Os funcionários públicos estão no limite do superendividamento. Atraídos pelo crédito fácil, contraem empréstimos que comprometem quase toda a renda. O consignado deve respeitar o limite de 35% dos vencimentos com o pagamento de prestações, de acordo com a lei, mas acaba sendo apenas mais uma entre as várias dívidas que a pessoa tem. Pela facilidade de concessão, acaba também colaborando para aumentar a pressão nas contas pessoais.
O volume total de concessões a servidores, atingiu R$ 169,2 bilhões em fevereiro, aumento de 7,4% em 12 meses, de acordo com o Banco Central (BC). Quando se divide esse total pelos 11,2 milhões de servidores no país – muitos dos quais não têm qualquer débito – chega-se a uma média de R$ 15 mil. O valor representa quase a metade do teto salarial de R$ 33,7 mil, os vencimentos do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).
A dívida por trabalhador equivale a cinco vezes o salário médio de R$ 2,9 mil do servidor. E é praticamente o dobro do que recebe um funcionário público no Distrito Federal: R$ 8 mil. O volume de crédito consignado do trabalhador do setor privado é de R$ 18,5 bilhões, 10,9% do montante dos funcionários públicos.
Ampliação
O governo quer ampliar a participação desse tipo de financiamento para quem trabalha em empresas, por isso determinou, na semana passada, por meio de medida provisória, que o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FTGS) seja usado como garantia para incentivar a modalidade de crédito. O objetivo é que isso seja feito de forma responsável. Mas o histórico não é favorável quando se veem casos de vários servidores.
O funcionário da Secretaria da Fazenda do DF Ronildo Alves, 47 anos, é um exemplo típico do drama do endividamento. Ele recebe R$ 7,8 mil por mês, em valores brutos. Em 2014, depois de se atolar em contas de cartão de crédito e pagamentos de impostos, fez dois empréstimos no Banco de Brasília (BRB), no total de R$ 40 mil, na tentativa de pagar juros mais baixos e, assim, se livrar aos poucos dos débitos. “Não resolveu nada. Continuei no vermelho e em janeiro passado renegociei um dos empréstimos. Agora R$ 3,8 mil saem direto do meu salário para o banco: R$ 1,8 mil são descontados no meu contracheque e o restante, da conta-corrente”, disse.
Alves conta que, para prevenir novos descontroles, eliminou dois cartões de crédito. Mantém só um, com limite baixo. “O máximo de gastos é de R$ 700, para não eu não me endividar muito”, revelou. A saga de Ronildo não acabou aí. O carro quebrou no mês passado e ele pediu ao banco para antecipar as férias e o 13º salário. “Fiz um financiamento de R$ 35 mil para comprar um carro 2010 que, no fim, sairá por R$ 57 mil. Mas automóvel em Brasília é necessidade, não é luxo, com o transporte público que nós temos”, justificou.
O servidor Nelson Vilasboas, de 41, tem renda de R$ 10,5 mil e pagará R$ 4,4 mil em 45 prestações, por dois empréstimos. “Isso aconteceu por falta de controle no cartão de crédito, além de problemas de saúde na família. Sem contar o aumento de preços em todos os produtos, muito além do que aparece nos índices oficiais de inflação”, explicou.
Descontrole no cartão de crédito também foi o motivo que levou Orlando Silva, 41 anos, salário de R$ 3 mil, a recorrer ao consignado em 2012. “Eu tinha uma dívida de R$ 3 mil no cartão que rapidamente se transformou em R$ 6,5 mil. Tomei emprestados R$ 10 mil e em 2014 refinanciei, porque não estava dando conta de pagar”, lamentou.
O céu é o limite
Servidores do Tribunal de Contas da União (TCU), do Senado e do Ministério Público, que estão entre os mais bem pagos do serviço público federal, recorrem ao Instituto Brasileiro de Estudo e Defesa das Relações de Consumo (Ibedec) para tentar solucionar dívidas que, muitas vezes, são de mais de R$ 700 mil. Isso não é para comprar imóveis, mas para ter carros e outros bens de luxo, que dificilmente cabem no bolso de um assalariado, por maior que seja sua renda. Viagens de férias e grandes festas, por exemplo, de casamento, também resultam em dívidas de difícil solução.
Parcela de até 90% da renda
Servidores públicos federais ganham acima da média dos brasileiros, têm elevado nível de formação educacional e capacidade cognitiva destacada, afinal, foram aprovados nos concursos públicos mais difíceis do Brasil. Por que, então, não conseguem controlar uma coisa até aparentemente simples, como o orçamento doméstico? Segundo especialistas em finanças pessoais, a resposta é a ausência de educação financeira de grande parte dessas pessoas. Há também o fato de saberem que o contracheque no próximo mês estará garantido, o que funciona como um gatilho para gastos desnecessários, parcelamentos a perder de vista com supérfluos.
“Eles sabem que não vão perder o emprego e é isso que os leva a ter até 90% do salário comprometido com prestação de carro, apartamento, cartões de crédito, bolsas caras e empregados. É preciso mudança de cultura”, diagnosticou Jason Vieira, economista chefe da Infinity Asset. “A facilidade de acesso ao crédito é insana em um país que tem a maior taxa de juros reais do mundo”, criticou.
Freio
O diretor do Instituto Brasileiro de Estudo e Defesa das Relações de Consumo (Ibedec), Geraldo Tardin, acrescenta que tramita no Congresso um projeto que faz alterações no Código de Defesa do Consumidor (CDC) para tentar frear propaganda que incentive o crédito. “É uma tentativa de responsabilizar bancos e financeiras que induzem o cliente, com propaganda de crédito pré-aprovado, sem burocracia, com saque na boca do caixa, sem considerar se a pessoa já não está no limite da inadimplência”, salientou.
Ele orienta o consumidor a ter cuidado, analisar despesas como viagens de férias, festas de aniversário. “Sempre falo para a pessoa pegar o juro, dividir pelo salário e ver o número de dias que vai ter que trabalhar para honrar o empréstimo. No caso da compra de um carro, em 72 vezes, com R$ 25 mil de juros, para quem ganha R$ 3 mil por mês, R$ 100 ao dia, serão 2,5 mil dias de trabalho. Vale a pena?”
Fonte: Correio Braziliense por Celia Perrone (06/04/2016)